Era uma vez uma menininha chamada Dulce.
Dulce era filha única de um casal meio desgovernado, tinha os cabelos emaranhados em canhos e uma pinta bem no meio do nariz.
Ela cresceu olhando o mar, sentindo cheiro de maresia, brincado entre conchas encharcadas de areia e dormindo com o doce embalar das
ondas.
Um dia, seus pais a pegaram nos braços e a levaram para longe do mar. Agora, de sua janela ela via somente pessoas em miniaturas e ouvia
barulhos fabricados. Ela nunca se sentiu tão só.
Então, a colocaram numa escolinha, para que conhecesse o mundo e fizesse amizades. Mas Dulce se sentia perdida no meio de todas
aquelas crianças iguais, com tanto em comum e que nunca tinha alcançado com os pés o doce salgado das águas onde cresceu. Ela era
diferente de todos eles, com aquela pinta que todos olhavam descaradamente, os pés descalço e os sonhos bem longe dali. Dulce sabia que
seu lugar não era ali e que nunca seria como todos eles.
Um dia, enquanto sonhava na caixa de areia, veio um pequeno ser brilhante e se sentou a sua frente, analisando Dulce com o mais distinto
entusiasmo. Dulce ficou pasmada, sem saber como agir, pois era a primeira pessoa que se metia em sua realidade.
- O que você está fazendo?
- Tentando sentir o cheiro do mar.
- E mar tem cheiro de que?
- Mar tem cheiro de água, de peixes, de barco, de gente, de vida.
- Hmm ... meu nome é Clara. E o seu?
- Dulce.
- Hmm ... então vamos brincar.
Clara uma menina branquinha, com lisos cabelos dourados e um vestido rosa claro com saia rodada e flores bordadas.
Clara pegou a menina pela mão, a levou para o meio do parquinho, onde todas as outras crianças brincavam fingindo não perceber. Com uma
canetinha de cor, Clara fez uma bolinha bem no meio do nariz e sorriu para a menina perdida. Assim, lhe mostrou suas bonecas, seus livros,
seus desenhos, seu lápis de cor.
Dulce contou para Clara histórias de pescadores, cantou canções para a lua e ensinou a amiga a virar estrela no chão.
Clara levou Dulce para casa, onde a mãe lhe fez doces e lhe sorriu com o coração.
Dulce mostrou para Clara sua coleção de conchinhas, seus segredos guardados e de noite, pediu para mãe que lesse para elas mais um livro
de aventuras distantes.
Dulce nunca tinha tido uma amiga que fosse real e Clara nunca tinha tido uma amiga de verdade.
Elas passavam a manhã enterrando contos no parquinho e a tarde desenterrândo-os no quintal, no jardim ou aonde quer que fossem brincar.
Num dia de muita chuva, Clara estava dormindo na casa de Dulce, e com os fortes trovões começou a chorar. Dulce deitou ao seu lado e
segurou sua mão.
- Amiga, não chore! A gente não pode ter medo da vida! Você me ensinou a não ter medo das pessoas, você tem que aprender a não ter
medo das outras coisas que vivem também.
Juntas escalaram o enorme sofá da sala e espiaram as nuvens se derreterem em água e o céu se desfazer em raios e sons. Elas ainda teriam
que perder muitos medos durante a vida, mas naquele momento, perderam juntas o medo do outro, de ter um amigo, de dividir a vida e de
poder amar alguém.